quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Relato de um desalojado


Enchente em itajaí

Postado no 25/ 11/ 2008 por Rogério Christofoletti - professor de jornalismo da Univali e coordenador do grupo Monitorando a mídia

Sou um dos mais de 20 mil desalojados nas enchentes que assolam o Vale do Itajaí, em Santa Catarina, neste final de novembro. É um drama, mas não é um drama isolado. Estimativas dão conta de que 1,5 milhão de pessoas tenham sido afetadas pelas fortes e constantes chuvas. São mais de 44 mil pessoas – até o momento – que estão desabrigadas ou desalojadas. Existe uma diferença entre uma coisa e outra: desabrigado é quem não tem onde ficar e vai para abrigos improvisados ou organizados pela Defesa Civil e órgãos de atendimento. Desalojado é quem está em casa de amigos, vizinhos, parentes, como é o meu caso.
Cerca de 80% da cidade de Itajaí está sob as águas, e todas as classes sociais estão atingidas. Dos miseráveis aos ricaços, ninguém foi poupado. Mesmo quem não foi diretamente atingido está sofrendo as conseqüências: veja o caso dos meus amigos Isaías e Raquel, que acolheram a minha família e mais outras duas em seu apartamento. A cidade deve sofrer nas próximas horas com falta de água, alimentos, combustíveis… Boa parte da cidade, metade dela, está sem energia elétrica.

Os gestos
É um lugar comum, um clichê desgastado, mas tem uma verdade incontornável: em momentos trágicos como este, nos surpreendemos com os gestos de solidariedade, amizade, fraternidade das pessoas. Das pequenas às grandes demonstrações: é o empresário carioca que disponibiliza caminhões da sua empresa para distribuir água; é o caminhoneiro anônimo que oferece carona a desconhecidos para atravessar um trecho alagado; são os amigos que se ligam para ter informações; são as pessoas que – mesmo atingidas – se colocam como voluntários para atender os outros.
Deixei minha casa, e depois conferi que cerca de 30 ou 40 cm de água havia invadido o local. Não pude permanecer lá. Saí no domingo de manhã, antes mesmo da água chegar. Fui com mulher e filho para um local seguro, e em seguida, fomos auxiliar no Colégio Dom Bosco, onde centenas de pessoas chegavam molhadas, com frio, com fome, e sem nenhuma esperança. Perderam tudo. Distribuindo roupas para as pessoas, eu via nos olhos delas um misto de vergonha, de desalento, de perplexidade. Um sofrimento intenso, difícil de escrever aqui.
Ontem, à noite, quando fomos à Univali para ajudar mais sofrimento e dor. Desespero e medo.

Tensão
No domingo à noite, passamos pelo Supermercado Angeloni e havia um clima silencioso de grande tensão, de comunhão pelo medo. As águas não paravam de subir e a maré cheia se aproximava. Depois, soube que o Angeloni – ao menos o seu estacionamento – ficou todo tomado pela água barrenta.
É manhã de terça, e os mortos já são 65. Temo que os números disparem assim que o nível da lama baixe e que a Defesa Civil, Bombeiros e Polícia possam chegar aos locais onde houve deslizamentos e quedas de barreira.
Conversei com vários moradores mais antigos da cidade, e que já passaram pelas famigeradas enchentes de 1983 e 1984. Eles me disseram que os dias que vivemos aqui são piores, bem piores. A cidade cresceu muito desde então. A área impermeabilizada aumentou, assim como a quantidade de lixo produzido também. Tudo isso associado às condições atmosféricas fizeram com que um cenário de guerra se descortinasse por aqui.

O caos
Alguém aqui lembrou um livro. Outro alguém, um filme. Acho que os dois exemplos dão uma noção do que estamos passando por aqui. O livro: Ensaio sobre a cegueira. O filme: Guerra dos Mundos. Nos dois, o panorama é de abandono, destruição, hordas de famintos e flagelados; desespero e o inevitável sentimento de perda. Imagens podem ser vistas no blog do meu amigo Robson Souza (http://luzeestilo.wordpress.com), e informações bem atualizadas no blog do Juliano Flor, acadêmico de Jornalismo (http://visaoextra.blogspot.com).
Demorei a postar algo aqui por diversos motivos: viajei a São Bernardo do Campo para o 6º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo na quarta 19 e só voltei no sábado, 21. No domingo, tudo aconteceu, e fiquei fora de órbita. Na verdade, ainda estamos fora de ordem.

A dor e o sofrimento não vão parar
Assim que as águas baixarem, projeto eu, entraremos em outra fase desse calvário: o de contabilizar os danos, limpar a destruição e passar a reconstruir a vida. Nada será como antes, e isso não é um pessimismo à toa. Quem passa por isso aqui não esquece. Nunca. Então, a vida está andando de lado, está suspensa. Não há aulas. Não há compromissos. Não há agenda a ser cumprida. Não há vida normal. Só existe o essencial: sobreviver.
Por isso, as imagens evocadas pelos meus amigos do livro e do filme não largam a minha cabeça. Calculo que não chegaremos a um nível tal de degradação como o relatado por José Saramago, em seu lindíssimo livro. Também acho que a destruição não será como a protagonizada por Tom Cruise nos cinemas. Mas a mobilização das pessoas, a interrupção brusca do ritmo da existência e a perplexidade com a nossa fragilidade e vulnerabilidade são os mesmos.
Estou bem. Minha família também. Os amigos idem. Aliás, graças à amizade, à generosidade, à imensa capacidade de doação de alguns, muito estão sobrevivendo.

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