quinta-feira, 15 de maio de 2008

2 a 1


GERALD THOMAS, O MATEMÁTICO

Juremir Machado da Silva - Correio do Povo

A província estava precisando de um choque cultural. Fernando Arrabal, escritor espanhol, nascido na África e radicado em Paris, e Gerald Thomas protagonizaram o barraco mais previsível do milênio. No primeiro encontro em Porto Alegre, num jantar, já brigaram por razões políticas. Thomas apóia Obama nos Estados Unidos. Arrabal aproveitou para desancar os americanos e pelo jeito meteu republicanos e democratas num mesmo saco. O brasileiro indignou-se e encontrou um meio de sugerir que o espanhol teria alguma simpatia franquista. Fechou o pau. Arrabal teve boa parte da família, inclusive o pai, condenada à morte pelo ditador Francisco Franco. Na falta de outros argumentos, jogou um livro com sua história em cima do histérico e sempre efervescente dramaturgo pós-moderno. Parece que Thomas devolveu a obra da mesma forma. Fernando Arrabal levantou-se e foi embora para o hotel.
Antes da briga com Thomas, porém, Arrabal praticou um ato iconoclasta da maior envergadura, algo quase impensável para um gaúcho, um gesto digno de um ex-surrealista, de um 'transcendente sátrapa do Colégio de Patafísica', uma enormidade capaz de provocar pânico: cochilou diante de dona Eva Sopher, a eterna dama do Theatro São Pedro. Eu não estava lá. Teria dado metade da minha vida para assistir a uma performance tão radical e dadaísta. Não encontro outro termo para qualificar essa situação inusitada. Nada como um estrangeiro para ignorar os nossos ídolos e produzir o absurdo que revigora. O verdadeiro motivo da briga entre Arrabal e Thomas foi simples: Arrabal nunca tinha ouvido falar em Thomas, cujo ego, sabidamente inflacionado, não suportou a desfeita. No entender de Thomas, no entanto, a razão foi outra: Arrabal teria ficado com ciúme da sua relação privilegiada com Samuel Beckett. Um duelo de vedetes.
A palestra de Fernando Arrabal no ciclo Fronteiras do Pensamento foi um sucesso. Gerald Thomas abandonou o jogo na metade e saiu vaiado. Fui me despedir de Arrabal na segunda-feira e perguntei-lhe sobre o ocorrido. Riu. Estava feliz. Ria de si mesmo e de Thomas, a quem só se referia como o matemático, pois dele nunca havia ouvido falar no mundo do teatro. Thomas teria dito a Arrabal que participara como assistente na montagem de uma peça de Beckett, na Inglaterra, em 1971. O espanhol fez as contas e concluiu que, na época, Thomas tinha 17 anos. Daí essa sua afirmação retumbante: 'Esse matemático é cretino e mentiroso. Na Inglaterra, sendo menor de idade, ele nunca poderia fazer esse trabalho'. Numa entrevista dada em 2007, que pode ser encontrada na Internet, Thomas declarou: 'Minha vida inteira é uma mentira'. Arrabal acha que percebeu isso em cinco minutos. Ao saber que Thomas abandonara a própria palestra na metade, Fernando Arrabal deu mais uma pancada: 'É um plagiário. Quis me imitar. Eu saí batendo a porta numa noite, ele fez o mesmo na noite seguinte. Só que ninguém me vaiou'.
Parece que tudo é mesmo relativo. O jornalista da Folha de S. Paulo, que costuma legitimar o delírio de Thomas, viu tudo ligeiramente invertido: 'Arrabal deixou o palco do Salão de Atos da Ufrgs sem dar um ponto final à palestra. (...) Já Thomas apresentou trechos de alguns de seus espetáculos em vídeo e, afirmando que não tinha discurso pronto, propôs responder perguntas do público. Saiu meia hora depois'. A platéia sabe que foi exatamente o contrário.

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